quarta-feira, 1 de setembro de 2010

O dono da dor sabe o quanto dói. O outro, compassivo, imagina que dói demais. O outro, vingativo, deseja que doa muito. O outro, indiferente, pensa que só nele existe dor. Ela nem conhece o dono. Não consulta o mapa antes de chegar. Se a dor existe, sem tem alguma face, é uma face branca, olhos arregalados. A dor é uma face branda. Um corpo que apenas cumpre o seu trabalho. Sempre adequado, sempre justo. A dor nunca ataca alguém. A dor apenas realiza seu ofício. Sem tribunal, sem remorsos, sem salário. A dor é uma fada, muda, inocente. Cega, certamente. E sábia. Alma transparente, a dor caminha sobre as pedras de fogo. A dor não se conhece. A dor não sabe de nada. O dono da dor pode gemer, gritar. A dor não ouve, não se compadece nem se orgulha. Tem uma tarefa. O dono da dor se contorce, até desmaia. O dono da dor morre. É nesta hora que a dor sai para outra viagem.
Eliana Mara de Freitas

6 comentários:

Bípede Falante disse...

Mal consigo dizer alguma coisa. Não há nada a dizer diante do que está escrito porque há muito, mas muito, para ser sentido.

Lucia Alfaya disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Lucia Alfaya disse...

Como Encarar a Morte

De longe

Quatro bem-te-vis levam nos bicos
o batel de ouro e lápis-lazúli, e pousando-o sobre uma acácia
cantam o canto costumeiro

O barco lá fica banhado
de brisa aveludada, açúcar,
e os bem-te-vis já esquecidos
de perpassar, dormem no espaço.

À meia distância

Claridade infusa na sombra,
treva implícita na claridade?
Quem ousa dizer o que viu,
se não viu a não ser em sonho?

Mas insones tornamos a vê-lo
e um vago arrepio vara
a mais íntima pele do homem.
A superfície jaz tranquila.

De lado

Sente-se já, não a figura,
passos na areia, pés incertos,
avançando e deixando ver
um certo código de sandálias.

Salvo rosto ou contorno explícito,
como saber que nos procura
o viajante sem identidade?
Algum ponto em nós se recusa.

De dentro

Agora não se esconde mais.
Apresenta-se corpo inteiro,
se merece nome de corpo,
o gás de estado indefinível.

Seu interior mostra-se aberto.
Promete riquezas, prêmios,
mas eis que falta curiosidade,
e todo ferrão de desejo.

Sem vista

Singular, sentir não sentindo
ou sentimento inexpresso
de si mesmo, em vaso coberto
de resina e lótus e sons.

Nem viajar nem estar quedo
em lugar algum do mundo, só
o não saber que afinal se sabe
e, mais sabido, mais se ignora.

Carlos Drummond de Andrade

Moniz Fiappo disse...

Lucia,
Voce sabe, é um processo lento, lento, mas algum dia doerá menos.
Obrigada pelo carinho.

Anônimo disse...

Esse tratado da dor da Eliana é duca!

Nilson disse...

Eliana disse tudo.